As imensas maravilhas do reforço positivo

A idade traz muitos benefícios, sobretudo porque se sabe mais e se espera menos, equação poderosa para uma imunização capaz de repelir parte do niilismo actual (cevado pelas crises ambiental e sanitária, mas prolongando também a velha descrença nas virtualidades humanas). Mas, claro, há sempre cometas negros que atravessam os escudos protetores. Um deles, também relacionado com a idade, é a perda de visão. Nada que não possa ser resolvido por uma prótese, às vezes até com benefícios estéticos evidentes.

E foi assim que “marquei uma consulta” numa empresa “líder de mercado” para saber como poderia voltar a ver bem, ler as letras miudinhas da edição de O Ser e o Nada do Círculo de Leitores. No dia e hora agendados, entrei na loja e fui encaminhado para um gabinete especializado em detetar qualquer tipo de miopia ou astigmatismo. A optometrista foi desde o início simpática e prestável, com uma visão, pelo que me foi dado a entender, perfeita. Questionou-me sobre o meu estilo de ver e objectos habitualmente visados. Computador e livros, as paisagens sinto-as e as pessoas evito-as, respondi, meio a brincar meio a sério. E, sim, já tenho uns óculos que uso para filtrar as radiações do computador. Com “Lentes de descanso”, informou-me. Sim, mas que depois de as usar pioram a leitura de livros, retorqui.

Iniciamos então o caminho do diagnóstico. Primeiro ao natural, letras projetadas, umas com um formato dado à evidência, outras propensas a criar ambiguidades. Tamanhos grandes, médio e pequeno. Fracassei nas que era suposto fracassar. Restava encontrar agora as lentes que trariam uma visão perfeita, até dos minúsculos “c” e “f”.

Equipamento modelar de lentes à frente do nariz (qual filme de super-heróis), lá fui tentando ler as letras, às vezes com sucesso, outras falhando como um iletrado (procurei mitigar a vergonha com um “mas não tenho a certeza”, embora duvide que ela se lembrasse sequer um pouco de Descartes). Tudo dentro do protocolo, se se vai fazer um teste de visão é porque já não se vê bem, resta o optometrista ou o oftalmologista testarem as diferentes lentes até que o paciente reconheça todas as letrinhas projetadas.

A estranheza surgiu à medida que me senti envolvido numa espécie de teste capaz de arrasar a minha autoestima. Se no início do procedimento, e até nas espectativas prévias à consulta, havia uma neutralidade científica indicando que a consulta não teria qualquer influência na forma como me estimo, à medida que a optometrista enfatizava os meus sucessos comecei a entrar no jogo do bom e mau: triste quando errava, feliz quando acertava. Apesar de nada disto resistir a uma pequena pincelada de racionalidade, a verdade é que me deixei ir atrás dos “muito bem” que me lançavam sempre que lia cinco letrinhas.

Isto prova que o reforço positivo resulta mesmo quando despropositado e em humanos que costumam olhar para ele com muita desconfiança (teoricamente, prefiro trabalhar o autoconceito em vez da autoestima, as fábricas de bazófias já produzem o suficiente). Enfim, nada de grave, foi só a prova de que não estou tão imune à parvoíce quanto creio.

A não ser que isso faça parte de um jogo mais amplo, retrospectivamente percebo que os reforços positivos me predispuseram favoravelmente para a etapa seguinte: comprar os óculos adequados ao “muito bem” final. Com eles serei o que vê “muito bem”, e de uma forma ou de outra arranjarei forma de me auto-reforçar positivamente sempre que ler sem esforço uma página de O Ser e o Nada. Claro, para isso terei de desembolsar quase um terço do ordenado na prótese que me foi proposta logo de seguida por uma colega da eficiente avaliadora. 

Bem sei que toda a publicidade e propaganda funcionam um pouco assim, que os educadores, formais e informais, têm de ter uma estratégia de reconhecimento capaz de motivar os aprendizes, mas não tinha consciência de que as maravilhas do reforço positivo pudessem, mesmo em procedimentos elementares, inebriar um céptico experiente.

 

[o cansaço alonga-se]

o cansaço alonga-se
nas ruas da cidade
exilada

sem rios para desaguar
a dor
roça as paredes das casas
e espraia-se nos bancos
dos jardins

não há notícia das chuvas
nem dos bandos de corpos
que mastigavam a sede

sobrevivem

meia dúzia de janelas
indefesas
e os acenos da memória

o último habitante feriu-se
quando tentou escalar
os dias

Dois poemas de 'Um pouco do meu sangue - Antologia de poesia italiana' (Ed. Contracapa, selecção e tradução por João Coles)

 
um pouco do meu sangue - Antologia de poesia italiana, Editora Contracapa, 2020

um pouco do meu sangue - Antologia de poesia italiana, Editora Contracapa, 2020

O rei pescador

Diz-se
que o Rei dos pescadores não busca senão
almas.

Eu já vi mais do que um
trazer para o lodo dos charcos
clarões de lápis-lazúli.

O seu reino é à medida do milímetro,
a sua flecha inexpugánel
pelos flashes.

Apenas o Rei pescador
tem a medida certa,
os demais têm uma só alma
e o medo
de perdê-la.

Eugenio Montale


[Se a alma perde o seu dom]

Se a alma perde o seu dom então perde terreno, se o inferno
é algo garantido, então a Abissínia da minha alma renasce.
Se a alva decide morrer, então o rio das nossas
lágrimas alarga-se, e a voz de Deus permanece contemplada.
Se a alma é a repugnância dos sentidos, então o amor
é uma ciência que fracassa à primeira tentativa. Se a alma vende a sua
bagagem, então a tinta é um paraíso. Se a alma
desce do seu degrau, a terra morre.

Eu contemplo os pássaros que cantam mas a minha alma
está triste como um soldado na guerra.

Amelia Rosselli


 

*Também disponível em breve na Livraria Poetria*

SAGA – Haikus Islandeses

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Em direção ao céu

os degraus

imitando um vulcão.

 

Contra o horizonte branco

dançam timidamente

as flores coloridas.

 

Envolvendo dentes-de-leão

uma renda –

longe a minha mãe.

 

Nesses mesmos seios

a saliva

de outro.

 

Sobre as ondas solidificadas

cresce o musgo –

dragões adormecidos.

 

“Não passarás”

disse o mar –

tornou-se ilha.

 

Agulhas caindo

numa lata de bolachas

vazia.

 

Alma lavada

com as entranhas

da terra.

 

Gotas caindo

na lagoa quente –

música de felicidade.

 

De barriga vazia

cheio de cansaço

e felicidade.

 

Mergulhando sob o azul

alguém toca piano

no meu esqueleto.

 

O musgo

cobre de suavidade

a violência arrefecida.

 

Ouço a guitarra

de Mike Oldfield –

chuva na Islândia.

 

Como estrelas cadentes

as gotas de chuva

percorrendo a janela.

 

Com os anos

tornei-me capaz

de ver apenas.

 

No azul quente

dos teus olhos

aqueço a alma.

 

No pêlo molhado

da égua

a marca da sela.

 

O poeta era leve

Saga

nem se cansou.

 

No pêlo do cavalo

Cai a chuva miúda –

verão islandês.

 

O que deus

deixou por acabar

o mais belo.

 

Nas arestas verdes

pastam

as ovelhas.

 

Caindo do infinito

mergulha a água

na terra.

 

Ainda não tiveram

tempo os riachos

de esculpir a terra.

 

Sobre verdes campos

os fardos

já esperam o Inverno.

 

Alguém regressa a casa

chove

amanhã amanhecerá.

 

É a chuva que cai

ou é apenas o mundo

a ser?

 

Pés molhados

copo de Brennivín

espera.

 

Depois de tantos anos

que pressa levam

as águas dos glaciares?

 

Contra os vidros

a chuva

acaricia-me o cansaço.

 

Ante que o verde branco

as ovelhas continuam

a pastar.

 

Não ouvir nada

além do vento –

que sorte a minha!

 

Em frente à cascata

três cavalos

contemplam a erva.

 

Do alto da montanha

vejo o mar

fecho os olhos vejo tudo.

 

Em cima da fraga

escutar atentamente

o silêncio.

 

Atirar calhaus

monte abaixo

e ver onde param.

 

Que fúrias divinas

terão esculpido

tais montanhas?

 

A pequena igreja

sobre a obra

de deuses antigos.

 

O templo maior é aquele

onde a chuva cai

livremente.

 

Depois de uma longa caminhada

os três cavalos

continuam no mesmo lugar.

 

Gotas de água

numa teia

esperam o Sol.

 

Abri o frasco

de tubarão fermentado

logo me arrependi.

 

Lá fora o vento

canta algo

que só compreendo dentro.

 

As luzes dos carros

passam

levando as vidas.

 

Inspirar fundo

o azul primitivo

da noite nórdica.

 

As nuvens afastam-se

e o verde

ilumina-se.

 

Milhares de anos

azul cortando

o verde.

 

Quase chegaram

a terra

os trolls de Reynisfjara.

 

Depois de tecer

a teia

a aranha espera.

 

A traça não compreende

a natureza

do vidro.

 

Vinho italiano

trutas islandesas

saudade portuguesa.

 

Até no paraíso o português

terá saudades

do seu buraco.

 

Nos montes o verde

escurece

na garrafa aclara.

 

Que pedem as vacas

que mugem

na escuridão?

 

À entrada da porta

o gato cinzento

despede-se dos viajantes.

 

O açúcar na chávena

arrefece –

chove no porto.

 

Más notícias

vêm de longe –

chove no porto.

 

Inalo o fumo

A chuva cai

Os carros passam.

 

Escrevo

porque os mortos

me visitam.

 

Islândia, Agosto de 2020

"Olhem bem como poisou a tinta"

Olhem bem como poisou a tinta
Saturno é senão a vítima castigada por um
génio pior que aquele que por ele espalha
o motivo do nosso horror precipitado

É verdade que os seus filhos
não podendo sequer sufocar o
primeiro choro escorrem-lhe já
desbordados pela beiça apavorada
mas a sorte é principal nesse sangue
juvenil e primordial sangue de onde
pende a cabeça miúda decepada
sangue vertendo finamente até aos
cavados feitos pelo gigante na carne
alva terna e maculada de inocência

Saturno curva-se ante uma pena eterna
o crime escorregadio da moral e do poder
cometido pelos homens todos do mundo
será justa a absolvição para um infanticídio
perdão para a fatalidade absoluta?

Olhando para o meneio do olhar lutuoso
salgando a carne húmida com as lágrimas
ferventes fala-nos do caos da tormenta
feita em seu rosto e esgota-se a divindade
nessa poluída fabulação de virtude

Vai sem castigo porque tu és só a pequenez
semeada nos homens e inevitavelmente
Júpiter dará a sua volta professa no céu infinito
vindo salvar essa tua tirania da já seca imortalidade