Até que o presidente Vladimir Putin, herdeiro de um país continente, no qual a morte provoca bem menos sobressaltos do que no Ocidente (ao qual, primeiro, quis pertencer e depois deixou de querer). Rússia, cuja história só retém quem consiga o cognome de «grande», compôs um presidente talvez sem muito princípio de realidade (filtrada pelos seus esbirros para que só lhe cheguem as moléculas que confirmam o que ele vai congeminando), talvez paranoico, como muitos pressagiam, talvez encurralado por pesadelos tecidos de ressentimento e vontade de vingança. Talvez outras coisas. É que, ao justo, ninguém faz a mais pálida ideia deste retorno das forças timóticas no reino da infinita e ilimitada erotização, também a da Rússia, dos oligarcas com iates de 100 milhões de dólares à classe média do Iphone de última geração. Há quem diga que nada disto é inesperado, que a guerra se preparava há 20 anos. Mas cheira-me a fazer prognósticos no fim. Tanto mais que o estilo, discursivo e corporal, de Putin se alterou de 2014 para cá: mais colérico, ameaçador, longamente descritivo e messiânico agora.
O que tenho lido na imprensa compõe um emaranhado de descrições e explicações sem linhas de sentido seguras, tudo pode ser uma e outra coisa. As questões geopolíticas pesaram, com certeza, na decisão, as psicopolíticas também, com a elite putiniana a transbordar de hormonas timóticas. Mas talvez devamos acrescentar um stress psicótico ou algum trauma dos habitualmente repertoriados pela psicanálise. Pode ser uma questão estética, enquanto sensibilidade bélica (os aviões de combate são considerados belos por muitos pais de família). Um desafio vindo do além, histórico ou religioso. Mas é seguro que o universo mental de Putin é o da violência, em 2015, quando entrou na guerra síria, terá dito: «As ruas de Leningrado ensinaram-me uma coisa: se a luta é inevitável, bate primeiro.»
Tudo isto apesar, ou por causa, de um contínuo declínio interno. A Rússia não deixou de declinar nos últimos 20 anos, exceto no campo mais estritamente militar (e mesmo este talvez não seja tão florescente como se pensa). Ajudado pelos combustíveis fósseis, Putin fez da Rússia uma «bomba de gasolina com mísseis nucleares», hard power bruto. Mas todos os outros domínios, do económico ao social, estão iguais ou piores do que há 20 anos. O nível de vida, a inovação, a cultura, as liberdades…, tudo isto se deteriorou. Com desigualdades superiores, por exemplo, às da China (estudo de Filip Novokmet, Thomas Piketty e Gabriel Zucman de 2018). País de cientistas, romancistas, músicos, bailarinos…, há agora um presidente que mantém os seus raríssimos convidados a 20 metros de distância, prova do falhanço da vacina Covid-19 Spoutnik.
Por mais que se diga, não interessa a Putin e à elite que o rodeia e se exercita em constantes genuflexões construir um qualquer futuro, mas regressar ao passado, reconstruir, mutatis mutandis, o grande império soviético (cuja queda foi, nas suas palavras, o maior fracasso geopolítico de todos os tempos). E, por isso, vê na Ucrânia virada para o Ocidente, com uma visível vontade de democracia, um desafio insuportável, uma traição. Alia-se a isto a crença, contraditória relativamente ao medo que tem do Ocidente, de que os países democráticos estão decrépitos, em 2019 disse ao Financial Times que o «pensamento liberal se tornou obsoleto».
Esta mistura de impulsos, uns mais timóticos outros fundados na velha teoria política da dicotomia amigo/inimigo de Carl Schmitt, que prolongou a célebre tese de Cal von Clausewitz segundo a qual «a guerra é a continuação da política por outros meios», pôs a Rússia e o seu presidente a sós consigo, isolada e ameaçada pela possibilidade, bem real, de um colapso económico (que, como é habitual, atingirá os mais desfavorecidos). Legado de um homem de 69 anos, ressentido e colérico, egomaníaco, talvez paranoico. Nada mau para alguém que tinha prometido estabilidade e prosperidade aos russos. Como escreve Piotr Smolar no Le Monde de 4 de março, Putin pôs, tudo o indica, uma bomba debaixo da sua poltrona. Ignoramos o comprimento do pavio.