3 poemas de Lalla Romano

 
 
 

Tradução: João Coles

No sangue reside um som profundo

Assim soube quando as tuas mãos

tocaram as minhas pela primeira vez

Desde esse dia ouvimos

como que um vento levantando-se

com o mugido de um órgão

até que por fim domados

nos vergou, como maduras espigas, aquele vento



Eu estou em ti

como o amado cheiro do corpo

como o humor do olho

e a doce saliva

Eu estou dentro de ti

da misteriosa maneira

que a vida está dissolvida no sangue

e misturada na respiração




Ninguém pode derrubar-nos da alegria

a nossa alegria subterrânea

como água branda

como veio de rocha

Bandini, chegaste à primavera

 

Paris

 

Na grande cidade

que teme

o pequeno pardal?

 

Ostras e Sancerre

ao fim da tarde

na Place de Clichy.

 

Saber além

do que os olhos julgam

ver como Dali.

 

Estômago vazio

que fome

de silêncio.

 

Torre de Dona Chama

 

Morreu o gato

quem me acompanhará

no silêncio?

 

Que vazia a sombra

do marmeleiro –

morreu o gato.

 

Dura mais a dor

do que

muitas vidas.

 

Que grande pode ser

a ausência

de algo pequeno.

 

À sombra do marmeleiro

uma ausência

dormita.

 

Cantam grilos e pássaros

como se nunca

o inverno.

 

Embalado pelos grilos

e quilómetros de cansaço

adormecer sob a figueira.

 

Cantam ao desafio

o grilo

e o verde primaveril.

 

Sobre o verde radiante

fogo de artifício colorido –

Primavera.

 

Parece ensaiar a última

parte do Bolero de Ravel

a natureza.

 

No lago verde

resistem os peixes –

ano seco.

 

No mundo das flores

a maior estrela

é o grilo.

 

Traço um verso

em silêncio

e a videira cresce.

 

Partilhando o mesmo charco

peixes e rãs

temem o verão.

 

É Maio

e mal se vê

a Serra de Orelhão.

 

Neste coro primaveril

até o burro

participa.

 

Mal se mostram as rãs

aproveitando

a última frescura do poço.

 

Que dores de cabeça

prometem os primeiros

rebentos da videira?

 

Debaixo de um seixo

a casa de um grilo –

silêncio.

 

Depois de regar

as videiras

sento-me e escrevo.

 

Ao lado do gato enterrado

florescem

as rosas vermelhas.

 

De flor em flor

a abelha partilha

o amor alheio.

 

Sente-se o verde

subir ao nariz –

pôr-do-sol.

 

Vem-me mostrar

uma mão de ovos –

mãe.

 

Rãs e grilos

e o cantor principal

um melro.

 

Anoitece

o canto do melro

refresca o ar.

 

Apoiado na enxada

o velho coveiro

olha a rama das batatas.

 

O velho sacristão

rega a horta –

manhã de primavera.

 

Depois de regar

murcha

a glória-da-manhã.

 

Murcha a glória-da-manhã

mal acabo

de regar o orvalho.

 

Depois de regar a vinha

sento-me

e leio Bashô.

 

Nas papoilas ao sol

o sorriso vermelho

daquela loira.

 

No ervilhal

já poucas flores

restam.

 

À sombra das favas

uma rã

e uma papoila.

 

Aberto sobre a mesa

o livro do mestre

apanha sol.

 

Em São Gregório aos seis anos

o ervilhal

uma floresta encantada.

 

Regando as alfaces ouço meu pai:

“se não fosse o sol

era uma escuridão.”

 

Mais uma vez cago

ao toque

do sino.

 

Pôr-do-sol

no lagar romano

um toque de eternidade.

 

Flor de giesta

esteva e rosmarinho

o aroma do pôr-do-sol.

 

No cimo da fraga

acompanhado pelo silêncio

lembro o desejo.

 

Levanto-me da fraga

crepita o musgo seco

ou os meus joelhos?

 

Que procura na camomila

ao sol

o percevejo?

 

Salpicando o caminho

de amarelo

os sargaços.

 

Piquenique de há décadas

espalhado ainda

no bosque.

 

Brotam da rocha

estevas e carrascos –

pôr-do-sol.

 

Este vento de eternidade

dobra a esteva

e a rocha.

 

Na boca

como um primeiro beijo

o morango silvestre.

 

Sussurro o nome

Jim Morrison

uma rã começa a cantar.

 

Se não chover

o que será

destas vinte rãs?

 

Enquanto o galo canta

alguém

afia uma faca.

 

São Leonardo da Galafura

 

Onde o eterno

é um horizonte

que o olhar alcança.

 

Sobre a eternidade

da rocha

pousa uma borboleta.

 

Cidões

 

Enquanto na cabeça

escrevinho um haiku

um cuco canta.

 

Resta da noite apenas

a sombra fresca –

manhã de primavera.

 

Contorcionistas

do tempo

as cepas velhas.

 

Dragões hidras

e quimeras

na vinha velha do meu avô.

 

Como eu

uma esteva soprada

por vento alto.

 

Silenciosamente a figueira

julga a inércia

da carne.

 

Foz do Tua

 

Ondas esmeralda

rasgando

a eternidade granítica.

 

Abril/Maio 2022

 

João Bosco da Silva

O Tempo dos Mágicos. A Grande Década da Filosofia, 1919-1929, Wolfram Eilenberger

Em O Tempo dos Mágicos. A Grande Década da Filosofia, 1919-1929, Wolfram Eilenberger (1972, filósofo, jornalista, professor, escritor) relata os acontecimentos biográficos e filosóficos de quatro «monstros» do pensamento ocidental: Ernest Cassirer, Martin Heidegger, Ludwig Wittgenstein e Walter Benjamin. Durante uma década, cada um destes pensadores define uma visão do mundo que os marcará visceralmente, enquanto estabelece um legado que alimentará toda a filosofia e as artes do século XX.

Escrito num registo que entrelaça citações filosóficas e episódios prosaicos, no que costuma chamar-se «história das ideias», permite aos não especialistas (haverá algum génio que abarque os quatros autores?) acompanhar e compreender o nascimento das ideias mais fecundas destes pensadores (mais exato seria dizer, com Claude Lévi-Strauss, «destes seres vivos»), que alimentarão a construção da neo-modernidade filosófica. A tradução é cuidada e inteligente, como nos habitou Isabel Castro Silva.

Este Bestseller (esteve durante sete meses na lista das melhores vendas do Der Spiegel, muito lido também em França e Itália) talvez crie alguma urticária nos sacerdotes do mundo da filosofia portuguesa (não é uma expressão feliz, entenda-se por isto o mundo académico que vive da filosofia em Portugal), costumamos eleger uma teorização abstrata e tendencialmente redundante em vez de uma interpretação das obras imbricadas com a vida; preferimos desencarnar os autores a vê-los na sua dimensão de humanos, demasiado humanos (como queria Nietzsche); despidos dos seus contextos de vida a contaminados pelas interações sociais e vitais. É como se purificássemos os autores para capturar mais facilmente as suas ideias, capturá-las melhor e conservá-las, lisas, em formol.

A relação vida/pensamento, tantas vezes apagada por simples facilitismo, fica demonstrada na forma como Heidegger considerou, ou consolidou, que a morte tem no Dasein o «efeito de um radical isolamento.» Depois do falecimento da mãe, um processo longo e doloroso, e na sequência de lhe ter dito, perto do final, que já não podia rezar por ele porque tinha de rezar por si, Heidegger confessou ter de carregar, com mágoa, esse desprendimento e que a sua filosofia não podia ficar só no papel. De igual modo, quem pode rejeitar que o antissemitismo sentido por Cassirer e a família a partir da segunda metade da década de 20 não influenciou o seu trabalho sobre as formas simbólica? Ou a experiência da guerra, na linha da frente, sempre perto da morte, bem como os anos de professor primário nas montanhas rurais da Áustria e a súbita conversão cristã atravessou sem deixar marcas as exigências lógicas, místicas e estéticas de Wittgenstein? Ou o registo de pinga-amor e a permanente falta de dinheiro de Benjamin decidiu uma parte da sua incapacidade em redigir um pós-doutoramento canónico e aceder a uma profissão académica?

Wolfram Eilenberger contribui, pela forma como nos dá a conhecer estes filósofos, imersos na vida, para o desenvolvimento de um sentido crítico sobre o estado vital da filosofia. Reduzindo-se, pelo menos em Portugal, a quase só servir para formar professores de filosofia e compor linhas de investigação adequadas às bolsas da FCT (apesar de tudo, mais relevante a primeira do que a segunda), a filosofia é cada vez mais anódina, um jogo concetual privado que entusiasma apenas uns poucos iniciados, boxeando no vazio. Vale o paralelismo que Eilenberger faz estre escolástica e filosofia analítica:

«À semelhança de grande parte da filosofia analítica atual, também a escolástica preferia o fetichismo das distinções subtis sobre um fundamento aparentemente sólido de investigação à aventura de propor um contributo relevante ao entendimento da sua época fundamentalmente instável.» (p. 234)

não venço o medo diurno

não venço o medo diurno
o qual carrego pelas avenidas 
em flores, pelas pontes silenciosas

chamo as coisas que conheço
pelos seus próprios nomes:
cadeiras, tábuas, despedidas
desespero

as que não conheço, ou que
estão para mim como o poente
amarelo, crio fisionomias:
alto, esguio, imponente
miúdo

à noite, não tenho medo
bebo como um animal sadio
pronto para sair e não 

voltar.

Dois poemas de Lalla Romano

Tradução de João Coles

Também o ar morreu
o céu é como uma pedra

Os pássaros já não sabem voar
arrojam-se como cegos
da beira dos telhados abaixo.


O sono durante as manhãs
prende-me os joelhos
e cinge a minha testa
com suaves ligaduras

E não invocado então
entras nos meus sonhos
e vencida acaricias-me
com mãos violadoras

A meio do dia claro
uma vertigem me cega
e no obscuro sonho
trémula me impele