"Cientificamente me pergunto", de Patrizia Cavalli


Todi, 17 de Abril de 1947 ~~ Patrizia Cavalli ~~ Roma, 21 de Junho de 2022



Tradução de João Coles



Cientificamente me pergunto
como foi criado o meu cérebro,
que faço eu com este engano.
Finjo ter alma e pensamentos
para melhor circular entre os outros,
por vezes parece-me mesmo amar
rostos e palavras de pessoas, raras;
sendo tocada gostaria de poder tocar,
mas descubro sempre que todas as minhas emoções
dependem de um temporal que se avizinha.


Io scientificamente mi domando
come è stato creato il mio cervello,
cosa ci faccio io con questo sbaglio.
Fingo di avere anima e pensieri
per circolare melgio in mezzo agli altri,
qualche volta mi sembra anche di amare
facce e parole di persone, rare;
esser toccata vorrei poter toccare,
ma scopro sempre che ogni mia emozione
dipende da un vicino temporale.

Siroco: um poema de Jorie Graham

Do lado esquerdo, Casa de Keats e Shelley, Roma, ca. 1906

Jorie Graham
”Sirocco,” de Erosion, 1983
Traduzido por Tatiana Faia

Em Roma, no número 26
             da Piazza di Spagna,
ao fundo de um longo
            lance de
escadas, estão os quartos
            alugados a Keats

em 1820,
            onde ele morreu. Agora
podes visitá-los,
            o pequeno terraço,
o quarto. Os pedaços
            de papel

em que ele escreveu
            versos
são guardados atrás de vidro,
            alguns amarelecendo,
alguns fotocopiados ou
            mimeografados...

Fora da sua janela
            podes ouvir o siroco
trabalhando
             o invisível.
Cada folha seca de hera
            é tocada,

retocada. Quem é o
            o espírito nervoso
deste mundo
            que tem de rever uma vez e outra
aquilo que já sabe,

o que é tão quente e seco
            que olha através de nós
por nós,
            para uma resposta?
No porto,
            no terraço

as rígidas formas
            helénicas
das uvas surgiram.

            Hão-de amolecer
até serem fracas o suficente
            para penetrar
este mundo, traduzindo
            desamparadamente
do belo
            ao verdadeiro...
Qualquer que seja o espírito,
            a densidade das uvas


é parte do seu modo de olhar,
            e as mãos lentas
que fizeram esta máscara
            de Keats
na sua outra vida,
            e a velha mulher,

a guardiã
            do memorial
sentada no alpendre
            abaixo do porto
a separar o grão
            de entre os seixos

lançando-os à sua caçarola
            de ferro forjado
Vê o que as mãos dela
            sabem –
são o seu hálito
            a sua língua-

-mãe, dividindo
            descartando,
Há uma luz brincando
            sobre as folhas,
sobre o seu rosto,
            tornando-a

abstracta, tornando-a
            rápida
e estranha. Mas ela
            não se preocupa
com o que a mancha
            mudando-a,

ela está
            a fazer o seu trabalho. Oh como queremos
ser levados
            e mudados,
ser emendados
            pelas coisas em que entramos.

É assim também
            com o mundo?
Deseja ele que nós
            o emendemos,
luz e escuridão,
            verde

e carne? Será
            livre então?
Penso que o mundo
            é um elemento
desesperado. Se pudesse
            deixar-nos-ia acalmá-lo,

recebê-lo. Por isso eis
            o que tenho
de te pedir
            que imagines: vento;
o momento em que
            o vento

se acalma; e as uvas,
            que nada são,
que brotam
            nas tuas mãos.

ADÁGIO PARA ACOMPANHAR UM QUADRO DE GIORGIO MORANDI

Giorgio Morandi, Natura Morta, 1941, Museo Morandi

para o José Carlos Soares,

agradecendo-lhe essa manhã
em que me deu a conhecer o tulipeiro
da Virgínia e a magnólia-sempre-verde
que vivem na casa Tait

Espremo laranjas, ergo jarras e copos,
perscruto a minha sina de transplantar
herbáceos, tabuadas e calendários
de vaso em vaso.

No quadriculado da fantasia doméstica,
anoto tudo quanto um dia deixarei
demarcado como me não tendo sido pertença.

Destas e de outras matérias,
fundarei um dia a raíz lancinante
dos meus versos noutra boca
já amados ou dilacerados.

Destas e de outras alegrias
vos darei conta e deixarei abaixo assinadas
como tendo sido a senha, o dote e a fábula
de uma ciência imprópria à tenra idade
minha
e dos demais humanos.

Sei – porque me disseram –
que outros seres há de diversa escala e porte
capazes de perdurar 
por milhares e milhares de anos,

como se de uma breve nota
ou apêndice se tratasse:
falaram-me dessas árvores
que trazem água desde as funduras
até à parca superfície dos céus.

E ainda me alertaram
para a existência de certos
e microscópicos bichos,
ocultos, anónimos,
parasitários alguns,

que não deixarão pedra sobre pedra
no mito de eu assim ter acontecido,
enquanto corpo ou alma, filho de um deus
ou mero bicho de contas.

E por tudo isto me anima pensar
na vida lá fora,
como numa imensa selva
urbana, rural, com vastas vias
de lenho, cimento e seiva,
perdidas entre o bem
e o mal –

inauditos, interditos,
e inesgotáveis:

assim vos congemino,
assim vos projecto e examino,
ó corpos tão fora e tão dentro
de mim.

Cumprindo a minha estóica rotina
de preferir ao tecido do vivido
a lenta e afiada agulha
que tudo cose no que contemplo
ou imagino:

assim extraio este breve adágio
onde vos sou companhia

e com as mãos que me servem a escrita
retiro as pevides ao sumo sabendo 
alegremente

que certo dia a semente 
perfeita do nada serão 

somente.

mau contato

mas esse homem gostava mesmo era da rinha. chegar no bar, tomar uma com mel, passar pelas mesas, cumprimentar as damas, atravessar a cortina de chita, a outra cortina de plástico, abrir caminho entre os outros alucinados. gostava assim, de chegar beirando o início. era como um ritual que se fosse quebrado, o azar também passaria pelas cortinas e seria instalado na escolha. blackout e os galos são cantados. no começo ele não percebeu, não se deixou perceber, apenas arrumava a franja e cuspia no chão. prezava pelo penteado a gel, pela sua gola levantada, pela sua fama de cão sortudo. lopez não tirava os olhos dele, nem quando disfarçava, olhava fundo o bico da bota ornada com o couro de cascavel, o chaveiro com um abridor de garrafas, uma pequeníssima e sorridente mulher havaiana e o chocalho da cobra que ele mesmo matou, todos sabiam a história, uma noite inteira de peregrinação no escuro, achar a borracharia e ainda voltar ao local com o carro orvalhado e manco, coisa de uma ou duas cobras no caminho, a depender do dia em que a história era repetida por mamú. jamais errou o galo e comemorava com os braços para o alto, sacudindo com o quadril o chocalho da cobra. às vezes gritava coisas como “ou ié” ou “nem deus chega perto” ou “foi assim que minha ex morreu”. lopez reprimia a louca vontade de se sentar ao seu lado na mesa, após as vitórias. o galo morto estará na cozinha, quase no ponto. o cheiro não mente, hoje o cozinheiro usou dendê. lopez ficava no balcão. raramente seus olhares se cruzavam e, quando acontecia, um dos dois ia ao banheiro, o outro ia ao caixa repôr o fumo, a pinga com mel de jataí, verificar se mamú, o dono da bodega, havia separado as balas de menta das balas de canela, os fósforos de cabeça vermelha dos fósforos de cabeça marrom, se certificar de que os corações de doce de abóbora estavam intactos e na validade para a meia dúzia de crianças que passava ali aos domingos. duas únicas vezes e por isso podemos chamar de dois milagres, duas vezes milagrosas em que tremeram os paralelepípedos daquela cidadezinha no velho goiás. o primeiro: ninguém foi ao banheiro e os dois se coincidiram na pinga com mel, nos corações de abóbora. um toque de joelhos e lopez olhava com a boca o chocalho e a havaiana, ele olhava com a pélvis as mãos de lopez. o momento que durou dias tirando a saúde de uma única fração de segundo. brindaram sem se olhar, “foi assim que minha ex morreu”, “saúde! saúde!”, cada um para o seu posto de vigiar o que não pode ser visto em direto, cada um em sua vigilante tensão. o outro milagre: a luta acabou e ele ficou lá atrás, debaixo da luminária com mau contato, olhando o cadáver do galo perdedor, sentindo o cheiro da cebola na panela que espera galo, com as duas mãos na cintura, talvez em lamento, talvez em reza profunda e silenciosa, talvez pensando naquela fresta de tempo no balcão, no voo das jataís, na gentileza de alguns insetos. lopez saiu da penumbra e se posicionou ao lado direito dele. lado a lado, duas golas levantadas, dois homens bonitos e pouco mansos, cada um à sua maneira, moderadamente brutalizados pelas quinas da vida, mas bonitos, destilados pela idade, pelo mel, pelo doce vendido como coração. rústicos por conveniência, por enfeite de alma que pode andar tranquila em terreno de olhos sombreados por chapéus imensos e coldres dos mais diversos couros. dessa vez foram os cotovelos, “o pobre não teve chance, lopez”, lopez apostou no pobre apesar de saber que o galo que ele escolhesse, seria o galo campeão. “nem chance e nem charme, lopez”, eles se olham sob a luminária, lopez fica azul, quase não respira e toma um tapa no peito, “cê é besta, homem? galo de briga precisa de charme? tava brincando contigo”. lopez forja uma risada, engole a risada forjada, passa o antebraço na boca, cospe no chão e entrega, “não gostei da brincadeira”. o clima é tão pesado que as penas do galo morto são tingidas de chumbo. o mau contato faz a luz oscilar cada vez mais e cada vez mais há mais espaço para o breu, cada vez mais. blackout. os homens se olham através do escuro, sempre se olharam. entre uma luta e outra, quando a luminária era apagada e mamú cantava os dotes dos combatentes, adaptados à escuridão, ele e lopez se olhavam, se olham pela escuridão, desde sempre se olham através do breu para que não fique claro que se olham. um brilho de lágrima, depois um anel de caveira, a pequena havaiana dança ao som do chocalho da cascavel. lopez enfia a mão no jeans dele e ele enfia os dentes no ombro de lopez. dois homens, duas jataís, duas bocas e mamú tateando o escuro à espera de alguma luz para apanhar o cadáver que estará depenado, desossado, amaciado por honradas botas de caubói. 

«Artes da Existência» vs. Autoajuda

Nunca li um livro de autoajuda. Porque sou snob, claro, mas também porque sou cético. Não acredito em milagres e tenho pouco jeito para a estupidez. Eis tudo o que parece haver para dizer. Tanto mais que acusar os outros nos oferece um bónus moral.

Mas como desconfio dos imperativos categóricos (contra, e. g., Kant e Valéry), sobretudo dos meus, questiono-me se não terei feito, obliquamente, uma qualquer tangente à autoajuda. E claro que fiz. Não uma «tangente», mas, em boa verdade, um mergulho. Confesso que imergi na autoajuda, mas numa autoajuda que julgo afastar-se, em elevação, do que me pode propor uma qualquer livraria.

Foi o filósofo Michel Foucault (ele não se considerava como tal, no máximo, dizia, era um jornalista, um historiador ou, em homenagem a Nietzsche, um genealogista) que consolidou a suspeita de que o «conhece-te a ti mesmo» da Grécia Antiga, verdadeiro conselho popular, certificado por Delfos, que Sócrates, através de Platão, inscreveu na cultura ocidental com a marca da filosofia, era o primeiro, e importante, passo para, sem condições a priori, nos ajudarmos. É que, como poderemos cuidar de nós, ou fazer algo de bom, se não nos conhecermos? É essa, aliás, a crítica que Platão faz na Carta VII (com muito de autobiográfico, afirmam os especialistas) ao tirano de Siracusa: como se atreveu ele a escrever um livro de filosofia se nem sequer se conhecia bem a si mesmo.

Para Foucault, as «artes da existência» tinham muito de autoconhecimento. A Antiguidade formou uma lenta, mas sólida, hermenêutica de si. Não bastou, porém, esta revelação para associar a minhas leituras mais eruditas ao movimento panfletário da autoajuda. Nos volumes II e III da História da Sexualidade (com os subtítulos, respetivamente, de Uso dos Prazeres e Cuidado de Si), Foucault assegura que o «conhece-te a ti mesmo» podia ser um truque dos essencialistas para que cada um encontrasse sempre a mesma coisa, um humano universal, uma, querendo ser platónicos, Ideia de Homem.

Por isso, com menos Platão (embora o Banquete e o Fédon sejam incontornáveis) e mais, e.g., Plutarco, Epicteto, Séneca ou Plotino, propõe umas «artes da existência» que contando com o conhecimento de si (todos concordamos que «Uma vida não examinada não merece ser vivida») conduzissem à transformação de si. Nas palavras do filósofo francês: por «artes da existência» é preciso «entender práticas refletidas e voluntárias, pelas quais os homens não apenas se fixam regras de conduta, mas procuram transformar-se a si mesmos, modificar-se no seu ser singular, fazer da sua vida uma obra com certos valores estéticos e que responda a certos critérios de estilo.» (Uso dos Prazeres, «Introdução», tradução minha) Bem entendido, isto aplicava-se somente a uma pequena parte da população: machos adultos livres.

Estas «artes da existência» passavam por «técnicas de si» relacionadas com regimes de saúde, gestão da casa e gestão amorosa (dietética, economia, erótica), suportadas pelo valor da moderação, mais perto da austeridade do que do seu contrário. Mantiveram-se ativas até ao período helenístico romano, acabando, depois disso, por perder muita da sua importância. Foucault questiona-se sobre por que razão um fenómeno cultural alargado na Antiguidade se esbateu, desqualificou e acabou excluído depois na idade Moderna. Por que razão a «procura, a prática, a experiência pelas quais o sujeito opera sobre si mesmo as transformações necessárias para aceder à verdade» foi afastada da filosofia? Tanto mais que governar-se a si mesmo era condição sine qua non para governar os outros. Responde acusando o cartesianismo de impor a primazia do conhecimento de si em detrimento das transformações de si. Bem entendido, com Pierre Hadot (o magnífico historiador da filosofia) e o próprio Foucault, que antes disso a pastoral cristã, e certas práticas de tipo educativo, médico e psicológico foram abafando um saber que dava demasiado importância às afrodisias. O medo das vertigens sexuais censurou 10 séculos de saber sobre as artes da existência.

Hoje, a ciência, que demasiadas vezes produz um conhecimento sem vida, diz-nos simultaneamente o que somos e as transformações que deveríamos fazer. Mas, bem vistas as coisas, parece não ter grande sucesso. Caso contrário, como se justificaria a edição pletórica de livros de autoajuda (também documentos vídeo e áudio)? Assim, com um sentido de oportunidade muito preciso, a indústria da autoajuda vem colmatar o fracasso da ciência e o desaparecimento das artes da existência. Resolve o problema? Não, claro que não. Somos uma sociedade doente, mesmo padecendo de fartura, como Jacinto. Mas que importa, um problema não resolvido cria e alimenta oportunidades para os mais ousados (não é a ousadia nietzschiana).

Para os mais escrupulosos, e corajosos, recomenda-se Espinosa, Kierkegaard ou Nietzsche, sobretudo este último, que lançou a ideia, sem saber muito bem o que fazer com ela, de fazermos da nossa vida uma obra de arte.